segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Ainda



Muitos anos lavaram sua alma, muita água rolou e lapidou, endureceu, desbotou. As pessoas em volta eram outras, a casa tinha outro endereço, os caminhos mudaram completamente, tinha passaporte com visto pro Japão, formou família, comprou uma bicicleta, se afastou do facebook, organizava listas de supermercado, não tinha mais tempo para os antigos hobbys, suas caixas de cartas e lembranças tinham ido pro lixo, alguém se desfez da coleção de garrafas e mal teve tempo de ficar brava por isso, onda após onda, não se lembrava muito bem nem das músicas velhas, nada mais lhe servia: nem roupas, nem sorrisos, nem sapatos, nem mesmo nomes. Nada, era inteiramente outra, engolida pelo mesmo, camuflada na rotina, nos planos comuns, na vida que seguiu.
Ou quase inteiramente.
Em uma madrugada sem sono, depois de por o bebê pra dormir, escutou bem baixinho algo batendo, guardado, mas vivo ainda. Parecia um coração...
"Será que ainda lhe servia?"
Claro que não, sabia muito bem que a vida gostava de pregar peças e essa era só mais uma, gostaria de acreditar que sim, que teria sua chance de confrontar, que ali naquele ponto da cidade alguém se lembrava também, mas não. Sabia que não, não serviria nunca mais, tinha ficado velho, empoeirado, não valia nem a pena tirar de onde estava guardado.
O problema é que batia sim, la no fundo, escondido, guardado, jogado, batia sozinho e era tanta lembrança nessas batidas que ainda fazia doer, se ela parasse pra ouvir (o que nunca era o caso).
Ainda tinha guardado o olhar, as frases marcantes, o beijo, as noites dançantes, como também ainda tinha guardado o gosto amargo do engano, do arrependimento, de tudo desandando, da nausea, o mundo girando, o peito apertado e o coração como uma semente de girassol que nunca mais floresceu outra vez.
Ainda sentia tudo isso e continuava assim, sem valer a pena.
Por isso era mais fácil voltar pro meio do tsunami da vida nova, aquela que segue: casa nova, filhos, contas, visto pro Japão, trabalho...

Um comentário:

  1. Valia mais a pena dançar a valsa lenta do dia a dia que dar trela pro ritmo meio sem jeito do inesperado.
    A gente cresce, adquire esse complexo de gente grande, segue em frente e se esquece de como é bom deixar o
    coração ditar o ritmo, tirar a poeira, encontrar novas cores e seguir viagem.

    É preciso parar de ignorar antes que o tempo acabe. De que vale estar vivo e não viver?

    Saudades daqui!
    Beijão, Raquel.

    semprovas.blogspot.com
    coracaoaflordapele.blogspot.com




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